A campainha toca, era o neto de Clara que vinha passar o dia com ela.
Clara põe uma máscara de cavalo, dessas enormes que chegam a nos pesar a
cabeça. Imaginamos o riso contido por debaixo da fantasia, esperamos um sorriso
de criança diante da travessura. Mas a filha de Clara, a mãe do menino, passa
reto sem notar a fantasia, enquanto se queixa do dia e dá instruções com o
filho no colo. Como se a mãe tivesse desde sempre cara de cavalo. Ou de mulher.
Tanto faz. Clara, um tanto quanto sem graça, tira a máscara e escuta,
obediente, o que devia ser feito.
Uma semana após ter assistido
Aquarius, o filme ainda ecoa, me pesando as ideias feito a máscara de cavalo na
cabeça de Clara. E essa cena em específico volta e volta e volta. Uma cena de
poucos segundos, que logo é substituída por outra, uma cena assim, pequena e de
pouca importância. Mas esses poucos segundos me resumem o filme todo. Me resumem
tanto da vida! Não um resumo assim, desses que perdem os detalhes enquanto
preservam a Ideia principal, com I maiúsculo e toda cheia de importância. Não.
Estou falando de um resumo enquanto potência, um resumo do pequeno, da poesia
em estado de semente.
A filha de Clara não conseguia ver poesia em seus dias. Sua vida era sua
rotina, sua rotina era sua logística. Babá, carro, trabalho, filho. E um brilho
murcho escorrendo dos olhos. Se a vida de Clara podia ser escrita numa música e
gravada num vinil, ou num moleskine e impressa num livro, a da filha era
esquematizada numa planilha de excel e exposta num programa de power point.
Na vida que corre cá solta, não
somos nem só a Clara nem só a filha (desculpem-me o ato falho, mas não consigo lembrar
seu nome). De verdade, nem a Clara é só Clara ou a filha é só a filha. Somos todos uma luta constante, um jogo de forças entre um e outro.
Controlamos os ponteiros, fatiamos os dias em tarefas, linhas e colunas, mas aí – sempre tem um “mas aí” – a vida chega e nos presenteia com uma máscara de cavalo,
uma cicatriz no peito, uma gargalhada amontoada de gente. Podemos enrijecer e
fazer de conta que nada vemos, ou podemos nos entregar às desimportâncias.
De um lado o boicote, do outro a arte. A escolha é nossa, embora não seja nem
fácil nem evidente. Embora exija um esforço. Clara que o diga.
Durante todo o filme, a protagonista
era convocada uma vez e mais outra e mais outra a reafirmar a sua escolha. A
escolher novamente. Entre o mp3 e o vinil, o silicone e a cicatriz no peito, o
aquarius e o Novo Aquarius. Como se tivesse algo errado em optar pela história, como se a louca fosse ela. Mas ela escolhia, contra todos, a favor da vida. Ela
escolhia a poesia.
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