Em janeiro desse ano, passei as férias na Chapada Diamantina, por entre
pés descalços, banhos gelados e pedras acariciadas pelo sol. Voltei de alma
simples, com a câmera abarrotada de fotos e a mala encrostada de lama. Um a um,
lavei blusas, shorts e tênis. Deixei roupa de molho, joguei algumas meias fora
e descobri o poder do Vanish.
Mas teve um short – sempre tem – que teimava em se manter cor de trilha.
Lavei uma, duas, três vezes, mas o danado era tinhoso: “Por que ser branco se
posso ser da cor da Bahia?”, ele me dizia a cada vez que olhava pra ele. Dei-me
por vencida e o deixei num canto do armário, aquele famoso cantinho do
depois-eu-vejo-o-que-faço-com-você.
Até que, sete meses depois, numa limpa de roupas, me deparo novamente
com ele. Nos encaramos por um tempo: “Você ainda tem esperança de me ver com
cara de loja?”, ele me desafiou com um risinho de vencedor. “Última tentativa”,
suspirei, e dei o derradeiro cala boca pro seu nariz em pé: de molho no Vanish
outra vez.
Algumas horas depois, volto pro campo de batalha, ou melhor, pra bacia.
Esfrega daqui, esfrega dali, o short chora lágrimas de lama. Torço uma última
vez – o barro pinga e escorre pelos braços. E não é que... tcharam! Eis o
branco outra vez!
Eu devia ficar feliz com minha vitória. Por um lado, fiquei – short novo
na gaveta. Mas olhei pra bacia, aquela água cor-de-burro-quando-foge e ah! Me
veio um sentimento de “balão estourado, de filme que acaba, uma tristeza de gol
contra...”[i]:
nostalgia da Bahia.
Aquela lama da Chapada era meio mágica, barro escavado por escravos à procura
de diamantes, esfregado no rosto em banhos medicinais, pisoteado por guias em
seu eterno ganha pão, fotografado por turistas e postado no Instagram. Eu
possuía um tiquinho dele no meu armário, e agora... um pedaço de Bahia escorria
pelo ralo.
Aprendemos desde cedo a não nos apegarmos a valores materiais. Roupa não
é importante – o que importa é o que vestimos por dentro. Enjoou? Doa.
Encardiu? Joga fora. Perdeu? Compra outro. E compra outro. E compra outro.
Filosofia hippie na embalagem – por
dentro, capitalista até dizer chega.
“O que fizemos com as coisas para devotar-lhes um tal desprezo?”[ii]
Da onde tiramos a noção de que nossa memória é formada pela pureza das ideias,
e não pelo despudor das coisas?
Antigamente, chamavam o puído das roupas de “memória”. Bonito, não? É
como dizer que roupa tem poesia. E não tem? O meu short baiano certamente
tinha. Ao vestirmos as roupas, elas se casam no corpo: alguns casamentos são
bem gostosos, outros, nem tanto. A calça pega o formato do quadril, a saia fica
puída ao se esfregar na bolsa, a blusa amarela debaixo do braço. Em silêncio, o armário
aberto conta uma história: a impressão digital da sua vida. Quem
mais, afinal, tem as mesmas roupas que você?
O pensamento ia longe enquanto a lama escorria pelos dedos. No varal, o
short cor de loja outra vez. Coloco-o sobre a face – quem sabe assim cheiros
baianos e cariocas se avizinhavam de novo? Mas que nada: só cheiro de sabão.
Bem baixinho, porém, a roupa me segreda, toda cheia de malícia: “me vira do
avesso”. Devagar, obedeço. Junto à etiqueta cortada, o short exibia um restinho
de triunfo: encardida, a borda de dentro sorriu pra mim.
[i] Achei essa passagem do Vargas Llosa,
em “Pantaleón e as visitadoras”, tão bonita que não resisti: trouxe pra cá.
[ii] Esse trecho foi retirado do livro “O
casaco de Marx, roupas, memória, dor”, de Peter Stallybrass. Aliás, a crônica é
toda inspirada nesse livro, que nos faz pensar a nossa relação – sociedade contemporânea
capitalista – com coisas e roupas.
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